11 de MAIO 2024

I ENCONTRO DA CEDROS

ESCOLA SUPERIOR DE EDUCAÇÃO de LISBOA

Começo por cumprimentar todas as pessoas presentes e dizer que é um prazer ter-vos aqui connosco neste dia de festa. Festa de Renovação, apetece-me chamar-lhe. Uma saudação aos nossos amigos que aceitaram participar e intervir nos diferentes momentos do programa: a Dra. Ma José Vidigal, A Dra. Maria Luís Borges de Castro, o Professor Doutor António Sampaio da Nóvoa, a Professora Doutora Patrícia Holanda, amigos que desejamos possam acompanhar-nos nesta caminhada que hoje tem a sua apresentação pública, mas que na verdade já se iniciou há alguns meses. Antes ainda de vos apresentar a CEDROS, quero deixar aqui um agradecimento muito sentido em nome de toda a direcção, à Escola Superior de Educação de Lisboa que nos cedeu este magnífico espaço para a realização do Encontro, aos músicos João Vasco e Eduardo Jordão que generosamente se ofereceram para abrilhantar esta festa com o concerto desta tarde, ao Colégio Moderno, cuja colaboração foi decisiva para podermos ter hoje um piano para o concerto, à SCML que nos permitiu tomarmos um café nas pausas do Encontro; um renovado agradecimento ao João Vasco que desde a primeira hora nos tem acompanhado com entusiasmo e que, para além da música que nos trás hoje, se empenhou no desenho do nosso site; ao Dr. Tiago Sustelo Freitas que desinteressadamente nos acompanhou também desde o início na difícil construção jurídica da Associação; ao ex CHLC actual Unidade Local de Saúde de S. José que nos cedeu o pavilhão onde está a nossa sede e aos responsáveis do Hospital Júlio de Matos que se empenharam na materialização dessa cedência; à arquiteta Inês Lobo que desenhou um belo projecto de reabilitação do pavilhão e que esperamos poder concretizar com a ajuda de todos. Por fim, um agradecimento às minhas colegas de direcção, Manuela Cruz, Paula Santos, Arlete Correia e Margarida Bilreiro que se entregaram de forma empenhada e com uma inexcedível dedicação à organização deste I Encontro. CEDROS. Porquê esta designação tão peculiar para uma associação ligada à saúde mental e à pedagogia terapêutica? Parece haver uma resposta óbvia, se declinarmos a palavra: Centro de Estudos, Divulgação e Reabilitação da Obra Santiana. Mas o que talvez muitos desconheçam, é que a dada altura, integrando o CSMIL fundado por João dos Santos (JS) em 1965, existiu uma clínica dedicada sobretudo ao tratamento de adolescentes, chamada Escola dos CEDROS. Esta Escola, como muitos dos serviços criados por JS, foi inovadora no seu tempo. Aí coexistiram oficinas de carpintaria, agricultura (havia mesmo um trator para lavrar a terra), mais tarde um atelier de fotografia com câmara de revelação, professores com formação em ensino especial, educadores, psicólogos, assistentes sociais, pedopsiquiatras, psicomotricidade, e que desenvolviam inúmeras actividades assentes essencialmente no conceito, muto valorizado à época, de ergoterapia, para além de outras intervenções terapêuticas mais convencionais. Hoje já não há cedros, nem escola dos Cedros, nem oficinas de carpintaria, nem atelier de fotografia, nem profissionais de ensino. O terreno onde se lavrava e semeava deu lugar ao cimento, a um parque de estacionamento e a uns armazéns. A extinta Escola dos CEDROS chama-se hoje Clínica da Juventude, e mantém uma actividade terapêutica dirigida à adolescência. Agora peço-vos que recorram à vossa imaginação e desse ponto onde existiu a Escola dos Cedros, tracem uma linha recta em direcção a nascente, e percorram-na durante 150 metros aproximadamente. Vão encontrar, sem possibilidade de engano um outro pavilhão, conhecido como o pavilhão da Arterapias, onde, mais recentemente, em 2004, foi criado um HD para crianças entre os 6 anos e os 12 anos. Para a 2a infância como é comum dizer-se. Aí coexistiram uma multiplicidade de actividades, desde as artes plásticas à musicoterapia, dramoterapia, dançoterapia e diferentes terapias envolvendo o corpo e o movimento, actividades de culinária e outras que a capacidade criativa dos profissionais e as exigências das crianças iam construindo. Terapeutas ocupacionais, terapeutas familiares, enfermeiros de psiquiatria e saúde mental, psicomotricistas, psicólogos, assistentes sociais, médicos pedopsiquiatras, assistentes operacionais, enfim, uma equipa multidisciplinar, conceito tão caro a JS, aí se dedicou durante quase 2 décadas a tratar crianças e famílias, num conceito moderno de HD. Hoje esse HD também já não existe. Entrou em agonia e tem o seu fim anunciado dentro de poucos meses. Porque não há profissionais, porque não há recursos, porque não há vontade de quem tem responsabilidades, talvez até por ignorância. Peço-vos agora mais um exercício de imaginação: façam de novo o caminho inverso, os mesmos 150 metros, mas deslocando o vosso percurso 45o para a direita. Vão encontrar um jardim frondoso, um tanto selvagem, com grandes árvores. Se procurarem dentro desse jardim, por entre as árvores, descobrem um pequeno pavilhão, com ar de pré-fabricado, onde funcionou uma clínica de pedopsiquiatria, actualmente desocupado e sem actividade. É neste vértice do triângulo imaginário que desenhámos (a geometria era uma ciência que JS muito prezava…), que está a “nossa casa” e onde acreditamos que será possível iniciar um movimento contrário, não de extinção, mas de renovação, de esperança e de futuro.“No futuro com João dos Santos”. Os cedros são árvores milenares, capazes de lançar raízes profundas, que perfuram até onde for preciso para encontrar a água que necessitam e por isso raramente secam. Nós acreditamos nisso. Mas então para vos apresentar a nossa/vossa associação, permito-me hoje uma outra declinação do acrónimo CEDROS. C de continuar. Continuar a obra de JS, numa luta contra a “incultura do esquecimento”, parafraseando Manuel Alegre. Se a obra de JS, as suas ideias, foram inovadoras e até revolucionárias no seu tempo, a força criadora e o humanismo que elas transportam trouxeram-nas até nós com a vitalidade necessária para que profissionais da saúde, da educação, das áreas sociais, possam hoje, ainda, ancorar-se nelas no dia a dia do seu trabalho com as crianças e com as famílias. Sim, as grandes ideias são permanentemente transformadoras, são intemporais, não têm prazo de validade. E de educar. A educação, arrisco-me a dizê-lo, foi outra das paixões de JS. Cedo, na sua prática enquanto professor de educação física, percebeu a importância do ato de ensinar; mais tarde, no Instituto Aurélio da Costa Ferreira, cimentou essa ideia, de que ensinar é muito mais do que transmitir conhecimentos. Socorro-me da obra da Professora Maria Eugénia Branco, “Saúde Mental e Educação”, onde ficamos a saber que já em Coimbra, no seu primeiro ano de medicina, JS passava tanto tempo no Magistério Primário daquela cidade, como na faculdade que frequentava, fruto da admiração que tinha pelo seu tutor e amigo Álvaro Viana de Lemos que nela lecionava e que terá sido responsável pela introdução em Portugal das teorias de Freinet. Não será, pois, por acaso, que o nosso I Encontro se realiza aqui na ESE Lx. Sobre o contributo extraordinário de JS para uma “nova teoria da educação”, nos falarão, melhor que eu o poderei fazer, os conferencistas que nos honram com a sua presença neste Encontro. A nós compete-nos aprofundar o diálogo entre profissionais da educação e profissionais da saúde, fazer desse diálogo uma constante da nossa práctica quotidiana e desse modo encontrar respostas para as crianças com dificuldades nas aprendizagens, sem a “psiquiatrização” sistemática dessas dificuldades. JS tinha um enorme respeito e admiração pelo trabalho de professores e educadores, e de certo modo “insurgia-se” com a excessiva intromissão de outras áreas nesse trabalho. É prática corrente as escolas receberem relatórios com recomendações específicas a adoptar em determinadas situações, que não têm em conta as limitações existentes, o que frequentemente provoca tensão entre os responsáveis de educação, os pais, e a Escola, que é acusada de não respeitar essas recomendações, ficando com o ónus do insucesso. Alargando o âmbito desse diálogo constante, creio ser fundamental dotar os professores de ferramentas de observação que permitam identificar situações de risco em termos de saúde mental. A escola, é sem dúvida o campo de observação mais privilegiado para detectar essas situações. Disse-nos JS que Pedagogia e Saúde Mental têm de caminhar de braço dado, no respeito permanente pela diversidade dos saberes. Os profissionais de saúde mental da infância têm de se interessar mais pela pedagogia. Os pedagogos enriquecerão certamente o seu trabalho se estiverem mais familiarizados com as vicissitudes do percurso para a saúde mental de crianças e jovens. Da nossa parte, estamos disponíveis e apostaremos fortemente no aprofundamento desse diálogo, na esperança que dele possam beneficiar famílias, crianças e jovens em dificuldades. D de Liberdade. Eu sei que liberdade não se inicia com D. Mas sei que foi a liberdade que nos trouxe e alimenta a Democracia em que hoje vivemos. JS lutou pela liberdade, e não sendo um político, o seu inconformismo, as suas ideias inovadoras, o arrojo com que revolucionou o “status quo” vigente na área da Saúde Mental e da Psiquiatria da Infância e Adolescência nos anos 50 do século passado, fizeram dele um dos maiores do seu tempo na entrega às causas da sociedade e da comunidade em que se inseria. A Ética e o Humanismo sempre presentes em todas as causas que defendeu no interesse das crianças, fizeram dele um “Homem Político” que, inquestionavelmente, se destacou na segunda metade do século passado. Ele sabia, e disse-o várias vezes e de muitas formas, que a Saúde Mental e a Educação só poderão florescer em Liberdade. Quem como eu, teve este privilégio de ver nascer a Democracia em Portugal, sabe bem como este país se transformou nos últimos 50 anos. E porque é sobretudo a Saúde e a Educação que nos juntou aqui hoje, importa reconhecer os extraordinários avanços nestes domínios. Em 1975, 1 em cada quatro portugueses era analfabeto. Hoje a taxa de analfabetismo está nos 5%. Nos anos 70, só 1% dos jovens com 20 anos frequentava o ensino superior. Hoje esse número multiplicou-se por 20! Em 1975 morriam à nascença 39 crianças por 1000. Hoje, esse número reduziu-se a 3 por 1000. A esperança média de vida passou dos 68 para os 82 anos. São números bem reveladores do que a Democracia nos trouxe e por isso, é um bem precioso que precisamos de preservar, sem descanso nem distracções. Infelizmente, quando olhamos para a realidade da Saúde Mental, 50 anos volvidos, o panorama é muito diferente e até desolador. Para quem, como nós, assistiu a tão grandes transformações, confrontados com a actual situação nesta área, constatamos não só que pouco ou nada se fez, como em muitos casos, há até um retrocesso. Paradoxalmente, nunca se falou tanto em Saúde Mental infantojuvenil como nos últimos anos, porque, essa é a realidade, nunca como hoje as taxas de prevalência de determinadas perturbações, como a ansiedade, as depressões, os comportamentos suicidários, os comportamentos aditivos sem substâncias, as perturbações relacionadas com o corpo foram tão elevadas, sendo mesmo previsível um aumento de incidência destas patologias. É verdade que se têm feito avanços significativos nas últimas duas décadas, para compreensão de determinadas perturbações, sobretudo na área do neuro desenvolvimento. Conceitos como neuro típico, neuro divergente ou neuro diversidade, têm hoje um lugar importante na compreensão de determinados fenómenos e que não podem ser ignorados. Mas este reconhecimento não nos pode impedir de continuar a escutar as palavras de JS, quando ele insistentemente chamava a atenção para a influência do ambiente, dos factores relacionais e sociais no desencadear do adoecer psíquico. E de o continuar a escutar quando dizia que a prevenção é a melhor arma para combater esta realidade. Por isso ele foi pioneiro num movimento absolutamente inovador, levando aos centros materno infantis a visão da saúde mental, antecipando e prevenindo dificuldades relacionais precoces entre os bebés e os cuidadores, trabalho que teve a participação activa de profissionais de enfermagem que quase sempre estão na primeira linha dos cuidados. Este trabalho não só não teve continuidade como se perdeu na memória do tempo. Com raras excepções, os cuidados de saúde primários têm estado de costas voltadas para a saúde mental, quando em meu entender, deveriam constituir-se como uma primeira linha na prevenção. Também na prevenção secundária, no tratamento das perturbações, a situação não é melhor. A visão hospitalocêntrica tem predominado, numa lógica essencialmente médico-psiquiátrica, levando a uma resposta centrada no sintoma e no seu rápido desaparecimento com o recurso excessivo à farmacologia. É verdade que existe uma pressão social para se encontrarem respostas rápidas para os problemas. Vive-se numa vertigem e é nessa vertigem que se exigem as respostas. Mas deixarmo-nos arrastar nesse turbilhão, não será certamente o melhor contributo para melhorar a saúde mental das crianças e dos jovens. Por isso o nosso R é de resistência. Resistir, procurando mostrar que existem outras respostas e outros caminhos na prestação de cuidados às crianças e jovens. Não pretendemos, naturalmente, substituir-nos aos serviços públicos. Somos uma pequena associação que está no seu início, que nasceu de uma ideia, transformada em ideal, mas sem idealizações. Sabemos que temos um trabalho árduo pela frente, mas não abdicamos, porque acreditamos, de mostrar que as crianças precisam de mais que um diagnóstico e um tratamento rápido. Queremos ser um exemplo, porque como JS tantas vezes disse, é sobretudo pelo exemplo que se ensina. Resistir é não confundir sintoma com doença. Resistir é não confundir a criança com um qualquer diagnóstico. Resistir é mostrar que as crianças precisam de mais que o ambiente asséptico dos gabinetes hospitalares. Precisam de espaços cuidados e luminosos que se constituam, para técnicos, famílias e jovens, como um primeiro impulso para a mudança necessária. Como nos ensinou JS, precisamos de afirmar que só com equipas multidisciplinares, em que os vários saberes se cruzam para potenciar uma resposta transformadora, renegando arrogâncias pseudocientíficas, poderemos verdadeiramente CUIDAR. Precisamos de olhar para as famílias como parte da solução e não como um obstáculo. Precisamos de afirmar o potencial transformador, insubstituível da relação terapêutica. Precisamos, mais do que nunca, de encontrar espaços capazes de acolher e transformar o sofrimento com o recurso a outras modalidades de intervenção, que facilitem a imaginação e a criatividade, que promovam a descoberta da Arte, que facilitem a expressão do corpo através do movimento. Resistir, é acima de tudo, mostrar que se pode fazer de outra forma. Resistir é também reivindicar e exigir que a Saúde Mental das crianças e dos jovens seja uma prioridade das políticas de saúde, e deixe de ser uma retórica vazia e sem consequências práticas. É nisso que acreditamos e é por isto que iremos trabalhar. Para tanto, precisamos da vossa ajuda, da ajuda de todos. O de observar. JS foi um mestre na observação das crianças. Alguns dos que aqui estão ainda puderam assistir às sessões abertas em que JS observava uma criança diante de um numeroso público ávido em contactar e apreender a forma única como ele o fazia. Recorro uma vez mais à obra da Professora Maria Eugénia para transcrever parte de uma entrevista dada por JS ao DN há 40 anos – diz ele” Outro princípio a que cheguei foi que a observação psicológica de alguém é sempre um fenómeno recíproco. Não se pode ser observador sem ser observado. O psicólogo tem de se pôr a jeito para ser visto, observado, mexido, tento colocar-me ao nível da criança. (…) Não é só a observação que é recíproca. O ensino da criança, a pedagogia e a didática também funcionam melhor quando são fenómenos recíprocos. É preciso que eu escreva coisas que a criança me dita, é preciso que lhe leia coisas, se quiser que ela se interesse pela leitura.” Esta forma de estar com a criança, pressupõe um despojamento de pré-juízos e de pré-conceitos, uma abertura plena em acolher o que a criança comunica e mostra das mais variadas formas, ainda que seja pela agitação incessante do seu corpo ou incapacidade de se deter muito tempo numa actividade, que hoje seria de imediato classificada como sofrendo de PHDA(!) e “travada na sua agitação”. Uma observação apressada, muitas vezes em gabinete exíguo e fechado, só pode levar a conclusões precipitadas. Eu diria que o que está em causa não é só o aumento das defesas da criança. Estão sobretudo em causa mecanismos defensivos dos próprios técnicos. Será sem dúvida a melhor homenagem a JS, se conseguirmos na nossa futura casa, organizar encontros com técnicos de diferentes áreas de forma a retomar e sistematizar a observação da criança à luz dos seus ensinamentos. Voltarmos a ser uma ESCOLA, viva, dinâmica, em partilha permanente de conhecimentos e experiências. S de sentir. JS era psicanalista e enquanto psicanalista aprendeu a valorizar o que se sente na relação terapêutica, instrumento fundamental para se chegar a um diagnóstico. Estamos naturalmente confrontados com as noções de transferência e contratransferência tão caras à psicanálise. Mas gostaria de simplificar esta importância do sentir, contando uma história que muitas vezes ouvi à Maria José Vidigal. Durante uma visita que JS fez a uma instituição que acolhia crianças cegas, visita acompanhada por alguns profissionais da instituição, JS entra numa sala e repara na aridez do ambiente, inóspito, sem umas flores, sem nada que alegrasse aquele espaço. E comenta o desconforto e estranheza que aquele ambiente lhe provoca. De quem o acompanhava ouve a explicação: -Enfeitar para quê, se as crianças são cegas? É verdade, são cegas, mas sentem! Sentem a tristeza do ambiente à sua volta, sentem a desmotivação de quem delas cuida, terá dito JS. Eu atrevo- me a acrescentar: sentem a depressividade de quem as rodeia, o que certamente dificulta e impede o acto de cuidar. Por isso, a importância do espaço, do ambiente, quando se cuida, seja qual for o tipo de cuidados. Mas eu atrevo-me a dizer que em Saúde Mental essa importância é muito maior. Por isso nós queremos que a nossa/vossa casa, sede da CEDROS se transforme nesse espaço luminoso, vivo, belo e inspirador. Para tanto, precisamos da vossa ajuda, da ajuda de todos. Porque a brisa que Abril nos trouxe ainda está presente nos nossos sentidos, quero terminar fazendo uma homenagem a outro grande lutador pela liberdade que partiu cedo demais. Venham daí connosco nesta aventura, e tragam outro amigo também.

Obrigado

Augusto Carreira